quinta-feira, fevereiro 02, 2006

O dia em que a terra nevou


<Este poema não é um poema>

Este Domingo nevou
flocos de neve pairando no ar
cristais de gelo que o vento deposita e cedo se sublimam
quais penas de anjo, ilusões que desaparecem no toque da realidade

Há meio século que não havia
e uma légua que não a via
Por tudo isto tenho que agradecer
Mas não sabendo a quem, a todos vou bem-dizer

Benditos os kondratiev da meteorologia,
que vez enquanto nos dão um nevão,
e outras, um vermelhão

Bem-ditos os ambiciosos e oportunistas,
que por ingénuos, nos tentam convencer
que com o que acumulam para comprar Mercedes,
um dia repararão o mal que vão fazer

E bem-dito seja Cavaco Silva,
que com uma campanha tão calculista e fria
pôs o país a nevar em sete dias
(mas vadre retro o arrefecimento da economia)

Este Domingo nevou
flocos de neve pairando no ar
cristais de gelo que o vento deposita e cedo se sublimam
quais penas de anjo, ilusões que desaparecem no toque da realidade


Este domingo nevou. Foi uma coisa especial que nunca tinha visto, já que há cinquenta e quatro anos que não nevava na minha terra e sou mais novo que isso. Quando a repetição de um evento desafia a memória dos velhos, ele tem o sabor de um milagre, de uma coisa maravilhosa e sagrada que nunca mais se repetirá, de um acontecimento fulcral na vida de uma pessoa com a criação de um genuíno antes e um genuíno depois. Hoje vivo no depois de ter nevado no Montijo. Antes vivia no antes.

Pode parecer estranho que se diga isto considerando que não foi a primeira vez que nevou, nem que tenha sido a primeira vez que tenha visto nevar. Mas o mundo onde vivemos é essencialmente mental, e havendo a ilusão de continuidade com quem nos antecedeu, não deixa de objectivamente ter um início e um fim. Neste mundo, cada categoria de eventos tem uma primeira vez (ou nenhuma), e é o confronto desta com o nosso conhecimento directo da frequência dos eventos que lhe são alternativos que estabelece a nossa relação de espanto, de experiência única que nunca mais se repetirá. Não admira que os "jovens" sejam tão atreitos a fanatismos e conversões: têm a experiência suficiente para determinar o que é comum mas não a idade suficiente para assumir o cinismo de que tudo acontece, tudo se repete, mais tarde ou mais cedo. Mas que dizer de uma quase vida à espera do maravilhoso, aprender a dura lição do que dela não pode ser esperado, e depois ser desenganado?

Na minha terra,...
Já vi cometas,
já vi um eclipse solar,
já vi tempestades dantescas,
só agora vi nevar...

Este Domingo nevou
flocos de neve pairando no ar
cristais de gelo que o vento deposita e cedo se sublimam
quais penas de anjo, ilusões que desaparecem no toque da realidade


Foi um momento inesquecível por boas e más razões. Um domingo frio começando com uma chuva gelada,... bem a propósito, porque me questionava se havia de correr ou não, sem vontade nenhuma. Um tempo de nuvens brancas e uma certa claridade húmida, molhada. Referências a neve noutros locais, os habituais, e os desejos recorrentes da minha mãe em estar neles para ver a neve a cair. Tenho um pequeno copo onde estou a criar feijões e grãos, e onde as raízes já arrebentaram, e um pensamento, a minha máquina fotográfica está com as baterias descarregadas, tenho que carregá-las para fotografar os ditos, se não uso este diário ao menos que o use como foto-diário de uma plantinha. Dito e Feito. E um grito, "Ó P., vem ver, é a neve, está a cair!!!". ...flocos de neve branca pairando no ar... era extraordinário, conseguia-se distinguir claramente os cristais a cair, a rodopiar, a voar, esvoaçar, flutuar,... desaparecer. Eram grande e distintos, com mais que tempo para os ver a pairar. Percebi o que nunca tinha percebido antes, que a forma dos flocos de neve os aproximava a pequenos pára-quedas, tornando-os em pequeninas folhas brancas caindo das copas no outono das nuvens. No outono, há certos dias no parque do Montijo que são assim: o céu enche-se de folhas a cair, suavemente, rodopiando, dando voltas, brincando com as crianças. O chão nesses dias enche-se de dourado e castanho, montinhos crepitantes que apetece explodir correndo por eles, e apercebo-me agora, de flocos de neve das árvores. Esses são os nossos nevões, sempre os tivemos e nunca me apercebi, os nossos dias especiais.

O que vi foi, muito parecido ao que já assisti nesses dias: folhas de neve a cair, ora rápidas, ora tomando o seu tempo, ao longe, um redemoinho contra as árvores do parque, pausando, continuando, umas vezes suspendendo-se como se retivessem a respiração, outras carregando vorazmente contra o asfalto da estrada, para desaparecerem como se nunca tivessem existido, e nisto diferiam dessa minha outra experiência... as minhas neves no parque amontoavam-se até os jardineiros as tomarem de ponta, mas estas eram uma ilusão do ar.

***

Agora que meti alguma distância entre mim e o acontecimento, espanto-me também com o tamanho dos cristais. A despeito da universalidade das fotografias que os mostram, sempre os pensei microscópicos, Estava errado. Os que vi talvez tivessem mais de meio centímetro de diâmetro. Também era subconscientemente céptico acerca do aspecto achatado dos mesmos. Se alguma o tivesse aceitado, já me teria perguntado porquê, e isso nunca aconteceu. Porquê? Porque é que eles são achatados? E porque é que eles, sendo irrepetíveis, têm uma quase perfeita simetria hexagonal? E porque é que pairam, quando podiam cair rapidamente aproveitando a secção do cristal com menos fricção ao ar?

Será que rodopiam enquanto caiem, como pequenos surikens? Isso poderia explicar várias coisas: um eixo de rotação define um plano privilegiado de crescimento, e a sua preservação por efeito giroscópico manteria o cristal numa posição de maior resistência ao ar na queda, se inicialmente calhasse aquela a acontecer, com a consequente velocidade terminal menor do que a esperada. Outra hipótese seria a de uma superfície não achatada mas ligeiramente abaulada, como uma asa ou um disco de frisby, criando forças aerodinâmicas aptas a virar o floco se este ganhasse velocidade na direcção do achatamento. Qualquer diferença de curvatura entre as duas faces seria suficiente para virar o cristal em direcções de maior travagem.

De resto tudo isto são considerações para fluidos não-turbulentos ou semi-estáticos face a um cristal bem mais pesado que o ar. A atmosfera não é assim, e desde que o floco ganhasse uma área desproporcional em relação ao seu peso, ele ficaria altamente sensível a ser levado pelas suas correntes... como uma folha, ou um plástico num redemoinho de vento.

Com tudo isto, não é difícil passar para o mistério seguinte: o que seria da terra se a neve não fosse assim? As consequências do que escrevi são óbvias: o formato dos flocos é tal, que os mesmos são constantemente amortecidos até ao chão. Consequentemente, a energia potencial deles deve ser distribuída mais homogeneamente pela atmosfera ao longo das suas quedas. Se caíssem mais depressa, a energia despendida por fricção seria maior na fase terminal dos mesmos, onde a velocidade seria maior e a lei do quadrado faria valer os seus pergaminhos. O ar seria mais aquecido perto da superfície. Além disso, com energias de impacto maiores, é crível que os flocos perdessem a sua forma, ou mesmo derretessem: a primeira levando a grãos de gelo com pouca capacidade mecânica de aderência (por meio do entrelaçamento dos dendrites que neste caso ficariam partidos, em oposição ao poder adesivo do gelo por meio das pontes de hidrogénio), o segundo a gotas líquidas. Em ambos os casos posso imaginar uma maior fluidez nos resultados do choque, com consequências na capacidade de retenção de água no solo para a mesma geometria de terreno (basta pensar numa encosta e nas diferentes propensões para a avalanche de uma acumulação de ganchos, esferas ou gotas de água... as avalanches das últimas acontecem tão rapidamente que nem sequer vemos o escoamento da água como aquilo que é, uma avalanche a partir de uma tentativa de retenção insustentável). A combinação destes dois mecanismos, maior temperatura no solo e menor resistência às avalanches, levaria a uma menor retenção da água e consequente necessidade de escoamento. Acresce que a atmosfera superior manter-se-ia mais fria do que poderia ser, promovendo a condensação da sua água. Isto é um cenário para cheias relâmpago e água em permanente escoamento, abundância catastrófica no inverno e seca generalizada nos restantes meses. Não nos esqueçamos que os rios costumam ser alimentados pelas neves acumuladas nas serras e montanhas. Pelas suas propriedades inerentes (reflexão solar, baixa conductividade devido ao ar aprisionado, etc), a neve derrete gradualmente, proporcionando um fornecimento relativamente estável de água ao longo do ano. E tudo porque a natureza decidiu criar obras de arte numa tela de ar.

***

Para terminar, uma nota sobre as ainda não referidas más razões... a anedota final que faltava. É curioso como os "tempos modernos" podem estragar qualquer milagre. A um evento desta natureza, não bastava ser inesquecível, não senhor, tinha que ser objectivamente inesquecível. Comecei o dia por suspeitar que iria precisar da máquina fotográfica (que a propósito, ainda não usei para o fim que referi no início, para feijões) e pus as suas baterias a carregar. Quando começou o nevão, tinha que fotografá-lo, claro. Mas as baterias ainda não estavam carregadas. Alguns dos outros conjuntos de bateria estavam bons? Não. O que tinha era suficiente? Talvez, mas, vim a descobrir que os cartões só tinham espaço para uma fotografia. Toca de descarregá-la depressa no computador (se ainda não o adivinharam ou se não a assumiram implicitamente, di-lo-ei explicitamente, é uma máquina digital). Desastre, o descarregamento das fotos descarregou-me definitivamente as pilhas. Corro para o telemóvel da minha mãe. Desastre, memória cheia.

Noutros tempos, teria saído para a rua e experimentado a sensação de uma "noite de natal" à tardinha. Teria me lembrado de ir buscar a cuba de gelo ao frigorífico para capturar flocos de neve, teria aberto todos os meus sentidos á experiência, teria feito um desenho, teria "grokado" o primeiro nevão da minha terra natal em meio século. Teria sido objectivamente inesquecível. O que não teria feito era passar a maior parte dos escassos vinte minutos que o fenómeno durou a procurar desesperadamente meios de pôr a funcionar uma máquina fotográfica. Como se sem o testemunho desta, não tivesse vivido a experiência. Mal vão os tempos...

Este Domingo nevou
flocos de neve pairando no ar
cristais de gelo que o vento deposita e cedo se sublimam
quais penas de anjo, ilusões que desaparecem no toque da realidade